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Competência da Justiça Militar da União e a ADPF 289



Caros Amigos,

Hoje, vamos falar sobre a competência da Justiça Militar e a possibilidade desta julgar civis.

No que toca à Justiça Militar dos Estados (JME), inexiste polêmica, posto que a Constituição disse competir às JME “processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei” (art. 125, § 4.º).

Contudo, à Justiça Militar da União (JMU) compete “processar e julgar os crimes militares definidos em lei”, conforme o art. 124 da Constituição, o que abre espaço para a polêmica. Logo, ao contrário da JME, a JMU não ficou impedida, pela Constituição Federal, de julgar civis. Afinal, crimes militares federais são aqueles definidos em lei e o art. 9º do Código Penal Militar permite expressamente que civis sejam enquadrados nas suas disposições:

Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:
I - os crimes de que trata este Código, quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela não previstos, qualquer que seja o agente, salvo disposição especial;
(...)
III - os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos:
(...)

A jurisprudência, por certo, vem impondo limites à competência da JMU para julgar civis, consoante se dessume dos seguintes precedentes:

HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PENAL MILITAR. CRIME DE FALSIDADE IDEOLÓGICA (ART. 312 DO CPM). COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. DELITO QUE NÃO AFETOU A INTEGRIDADE, A DIGNIDADE, O FUNCIONAMENTO E A RESPEITABILIDADE DAS INSTITUIÇÕES MILITARES. ORDEM CONCEDIDA. PRECEDENTES. I – No caso sob exame, o paciente, buscando ocultar sua verdadeira identidade, haja vista ser foragido da Justiça, logrou obter uma cédula de identidade ideologicamente falsa. Visando ao aperfeiçoamento do delito praticado, falsificou outros documentos, entre os quais o Certificado de Alistamento Militar – CAM. II – Os delitos cometidos são de competência da Justiça Federal comum, uma vez que não afetaram, ainda que de forma potencial, a integridade, a dignidade, o funcionamento e a respeitabilidade das instituições militares, de modo a atrair a incidência do art. 9º, III, a, do Código Penal Militar. Precedentes. III – Ordem concedida para declarar nula a ação penal movida contra o paciente na Justiça Militar da União (Ação Penal 0000055-31.2010.07.02.0202 da 2ª Auditoria da 2ª Circunscrição Judiciária Militar) a partir do recebimento da denúncia.
(HC 118047, Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 05/11/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-229 DIVULG 20-11-2013 PUBLIC 21-11-2013)

Habeas corpus. 2. Crime de ingresso clandestino (art. 302 do CPM). Delito praticado por civis. 3. Competência para processo e julgamento. 4. A conduta de ingressar em território das Forças Armadas afronta diretamente a integridade e o funcionamento das instituições militares. Subsunção do comportamento dos agentes ao preceito primário incriminador consubstanciado no art. 9º, inciso III, “a”, do CPM. Submissão à jurisdição especializada. 5. Reconhecida a competência da Justiça Militar da União para processar e julgar o crime de ingresso clandestino em quartel militar praticado por civis. Ordem denegada.
(HC 116124, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 13/08/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-171 DIVULG 30-08-2013 PUBLIC 02-09-2013)

“HABEAS CORPUS” – CRIME MILITAR EM SENTIDO IMPRÓPRIO – FALSIFICAÇÃO/USO DE CADERNETA DE INSCRIÇÃO E REGISTRO (CIR), EMITIDA PELA MARINHA DO BRASIL – LICENÇA DE NATUREZA CIVIL – CARÁTER ANÔMALO DA JURISDIÇÃO PENAL MILITAR SOBRE CIVIS EM TEMPO DE PAZ – OFENSA AO POSTULADO DO JUIZ NATURAL – INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR – PEDIDO CONHECIDO EM PARTE, E, NESSA PARTE, DEFERIDO. A QUESTÃO DA COMPETÊNCIA PENAL DA JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO E A NECESSÁRIA OBSERVÂNCIA, PELOS ÓRGÃOS JUDICIÁRIOS CASTRENSES, DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DO JUIZ NATURAL. - A competência penal da Justiça Militar da União não se limita, apenas, aos integrantes das Forças Armadas, nem se define, por isso mesmo, “ratione personae”. É aferível, objetivamente, a partir da subsunção do comportamento do agente – de qualquer agente, mesmo o civil, ainda que em tempo de paz – ao preceito primário incriminador consubstanciado nos tipos penais definidos em lei (o Código Penal Militar). - O foro especial da Justiça Militar da União não existe para os crimes dos militares, mas, sim, para os delitos militares, “tout court”. E o crime militar, comissível por agente militar ou, até mesmo, por civil, só existe quando o autor procede e atua nas circunstâncias taxativamente referidas pelo art. 9º do Código Penal Militar, que prevê a possibilidade jurídica de configuração de delito castrense eventualmente praticado por civil, mesmo em tempo de paz. A REGULAÇÃO DO TEMA PERTINENTE À JUSTIÇA MILITAR NO PLANO DO DIREITO COMPARADO. - Tendência que se registra, modernamente, em sistemas normativos estrangeiros, no sentido da extinção (pura e simples) de tribunais militares em tempo de paz ou, então, da exclusão de civis da jurisdição penal militar: Portugal (Constituição de 1976, art. 213, Quarta Revisão Constitucional de 1997), Argentina (Ley Federal nº 26.394/2008), Colômbia (Constituição de 1991, art. 213), Paraguai (Constituição de 1992, art. 174), México (Constituição de 1917, art. 13) e Uruguai (Constituição de 1967, art. 253, c/c Ley 18.650/2010, arts. 27 e 28), v.g.. - Uma relevante sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (“Caso Palamara Iribarne vs. Chile”, de 2005): determinação para que a República do Chile, adequando a sua legislação interna aos padrões internacionais sobre jurisdição penal militar, adote medidas com o objetivo de impedir, quaisquer que sejam as circunstâncias, que “um civil seja submetido à jurisdição dos tribunais penais militares (…)” (item nº 269, n. 14, da parte dispositiva, “Puntos Resolutivos”). - O caso “ex parte Milligan” (1866): importante “landmark ruling” da Suprema Corte dos Estados Unidos da América. O POSTULADO DO JUIZ NATURAL REPRESENTA GARANTIA CONSTITUCIONAL INDISPONÍVEL, ASSEGURADA A QUALQUER RÉU, EM SEDE DE PERSECUÇÃO PENAL, MESMO QUANDO INSTAURADA PERANTE A JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO. - É irrecusável, em nosso sistema de direito constitucional positivo – considerado o princípio do juiz natural –, que ninguém poderá ser privado de sua liberdade senão mediante julgamento pela autoridade judiciária competente. Nenhuma pessoa, em consequência, poderá ser subtraída ao seu juiz natural. A nova Constituição do Brasil, ao proclamar as liberdades públicas – que representam limitações expressivas aos poderes do Estado –, consagrou, de modo explícito, o postulado fundamental do juiz natural. O art. 5º, LIII, da Carta Política prescreve que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”.
(HC 110237, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 19/02/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-041 DIVULG 01-03-2013 PUBLIC 04-03-2013)

“HABEAS CORPUS” – IMPUTAÇÃO, AO PACIENTE, QUE É CIVIL, DE CRIME MILITAR EM SENTIDO IMPRÓPRIO – SUPOSTO DELITO DE DESACATO A MILITAR (CPM, ART. 299) – OCORRÊNCIA DESSE FATO EM AMBIENTE ESTRANHO AO DA ADMINISTRAÇÃO DAS FORÇAS ARMADAS – MILITAR DO EXÉRCITO, SUPOSTAMENTE DESACATADO, QUE REALIZAVA ATIVIDADE DE POLICIAMENTO OSTENSIVO NO PROCESSO DE OCUPAÇÃO E PACIFICAÇÃO DAS COMUNIDADES DO COMPLEXO DO ALEMÃO E DA PENHA, NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO – FUNÇÃO DE POLICIAMENTO OSTENSIVO QUE TRADUZ TÍPICA ATIVIDADE DE SEGURANÇA PÚBLICA – CARÁTER ANÔMALO DA JURISDIÇÃO PENAL MILITAR SOBRE CIVIS EM TEMPO DE PAZ – REGULAÇÃO DESSE TEMA NO PLANO DO DIREITO COMPARADO – OFENSA AO POSTULADO DO JUIZ NATURAL – INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DA JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO – COMPETÊNCIA PENAL DA JUSTIÇA FEDERAL COMUM (CF, ART. 109, IV) PELO FATO DE A VÍTIMA, MILITAR DO EXÉRCITO, QUALIFICAR-SE COMO AGENTE PÚBLICO DA UNIÃO – PEDIDO DEFERIDO. FUNÇÃO DE POLICIAMENTO OSTENSIVO EXERCIDA POR MILITAR DAS FORÇAS ARMADAS – ENCARGO QUE SE QUALIFICA, CONCEITUALMENTE, COMO TÍPICA ATIVIDADE DE SEGURANÇA PÚBLICA. - Refoge à competência penal da Justiça Militar da União processar e julgar civis, em tempo de paz, por delitos supostamente cometidos por estes em ambiente estranho ao da Administração Militar e alegadamente praticados contra militar das Forças Armadas no contexto do processo de ocupação e pacificação das Comunidades localizadas nos morros cariocas, pois a função de policiamento ostensivo traduz típica atividade de segurança pública. Precedentes. A REGULAÇÃO DO TEMA PERTINENTE À JUSTIÇA MILITAR NO PLANO DO DIREITO COMPARADO. - Tendência que se registra, modernamente, em sistemas normativos estrangeiros, no sentido da extinção (pura e simples) de tribunais militares em tempo de paz ou, então, da exclusão de civis da jurisdição penal militar: Portugal (Constituição de 1976, art. 213, Quarta Revisão Constitucional de 1997), Argentina (Ley Federal nº 26.394/2008), Colômbia (Constituição de 1991, art. 213), Paraguai (Constituição de 1992, art. 174), México (Constituição de 1917, art. 13) e Uruguai (Constituição de 1967, art. 253, c/c Ley 18.650/2010, arts. 27 e 28), v.g.. - Uma relevante sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (“Caso Palamara Iribarne vs. Chile”, de 2005): determinação para que a República do Chile, adequando a sua legislação interna aos padrões internacionais sobre jurisdição penal militar, adote medidas com o objetivo de impedir, quaisquer que sejam as circunstâncias, que “um civil seja submetido à jurisdição dos tribunais penais militares (...)” (item nº 269, n. 14, da parte dispositiva, “Puntos Resolutivos”). - O caso “Ex Parte Milligan” (1866): importante “landmark ruling” da Suprema Corte dos Estados Unidos da América. O POSTULADO DO JUIZ NATURAL REPRESENTA GARANTIA CONSTITUCIONAL INDISPONÍVEL, ASSEGURADA A QUALQUER RÉU, EM SEDE DE PERSECUÇÃO PENAL, MESMO QUANDO INSTAURADA PERANTE A JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO. - Ninguém pode ser privado de sua liberdade senão mediante julgamento pela autoridade judiciária competente. Nenhuma pessoa, em consequência, poderá ser subtraída ao seu juiz natural, sob pena de invalidação do processo em que consumada a ofensa ao postulado da naturalidade do juízo. A Constituição do Brasil, ao proclamar o regime das liberdades públicas – que representa expressiva limitação aos poderes do Estado –, consagrou, de modo explícito, o dogma fundamental do juiz natural. O art. 5º, LIII, da Carta Política prescreve que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”.
(HC 112936, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 05/02/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-093 DIVULG 16-05-2013 PUBLIC 17-05-2013)

Os casos citados sintetizam o entendimento de que, para que exista a competência da JMU, o crime deve afetar “ainda que de forma potencial, a integridade, a dignidade, o funcionamento e a respeitabilidade das instituições militares”. O leitor atento lembrará, inclusive, que o último caso foi comentado neste Blog em 2013.  

O fato é, que, no panorama atual, um civil pode ser julgado pela JMU se houver ofensa à dignidade das forças armadas.

Há que se salientar, contudo, que, em 15 de agosto de 2013, o Procurador-Geral da República ajuizou ADPF postulando que o art. 9º do CPM seja interpretado conforme a Constituição para que este não seja aplicado a civis em tempos de paz (ADPF 289). Segundo a inicial, tal aplicação implicaria em ofensa aos princípios do juiz natural e da razoabilidade. Afinal, não faz sentido a JMU julgar civis em tempos de paz se o objetivo da Justiça Militar é manter a hierarquia e a disciplina. Elencou farta jurisprudência do próprio STF, bem como da Corte Interamericana de Direitos Humanos e da Suprema Corte dos Estados Unidos da América.

Em síntese, trata-se de medida que, se acolhida, modificará o panorama atual, pois inexistirá civil praticando crime militar em tempos de paz. Os fatos que antigamente seriam julgados pela JMU passarão a ser julgados pela justiça comum, federal ou estadual, conforme o caso. Portanto, a ADPF deve ser acompanhada por todos que se interessam por direito e processo penal, especialmente por aqueles que almejam concursos públicos. Atualmente, o feito encontra-se concluso com o Relator, para análise do pedido liminar.

Sugere-se a leitura da inicial da ADPF, bem como do inteiro teor de todos os casos acima citados.

Fiquem conosco!

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