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Interceptação telefônica e prova emprestada



Caros Amigos,

Por sugestão de Gabrielle Pagel, trato da possibilidade de uso das interceptações telefônicas como prova emprestada.

A matéria suscitou polêmica, com base no argumento de que não se poderia permitir que o empréstimo das interceptações para outro processo caso isto implique em burla ao disposto nos artigos 5º, XII, da Constituição Federal, e 2º da Lei 9.296/96, os quais impõem os seguintes requisitos para o deferimento deste meio especial de investigação:

a) a interceptação deverá se dar em inquérito ou processo criminal;
b) o crime investigado deverá estar sujeito à pena de reclusão;
c) não pode existir outra forma de produzir a prova senão através da interceptação;
d) devem restar demonstrados indícios razoáveis de participação do investigado na infração penal.

Isto é,  seria mesmo possível que o conteúdo de uma interceptação fosse utilizado como prova em um processo onde se discutia crime punido com detenção, ou, pior, em um procedimento administrativo?

         Da mesma forma, seria preciso cuidar para garantir que o ingresso desta nova prova não implicasse em ofensa ao princípio do contraditório, nem fosse utilizada contra terceiro, contra quem não poderia ter sido deferida a interceptação. 

          Mas o que vem decidindo a jurisprudência?

Em virtude da necessidade de não se ignorar uma prova colhida licitamente no processo de origem, mas de sorte a evitar alegações de burla aos requisitos legais e constitucionais, a jurisprudência vem aceitando o empréstimo com temperamentos, isto é, sempre que a interceptação tenha se dado de forma lícita nos autos de origem e que se garanta o contraditório na segunda ação penal.

Nesse sentido:

HABEAS CORPUS. CORRUPÇÃO ATIVA E FRAUDE PROCESSUAL. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. IMPOSSIBILIDADE. PROVA EMPRESTADA. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA. ILICITUDE. INEXISTÊNCIA. INQUÉRITO POLICIAL. PEÇA INFORMATIVA. VIOLAÇÃO AO CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. INOCORRÊNCIA.
1. Conforme a jurisprudência desta Corte, o trancamento da ação penal, pela via do habeas corpus, é medida excepcional, só admissível quando despontada dos autos, de forma inequívoca, a ausência de indícios de autoria ou materialidade delitiva, a atipicidade da conduta ou a extinção da punibilidade, o que não ocorre no presente caso.
2. Inviável o trancamento da ação penal quando a exordial descreve, ao menos em tese, fato delituoso com todas as suas circunstâncias, possibilitando, dessa forma, o amplo exercício de defesa (ex vi do art. 41 do CPP).
3. O Juiz de Direito da Vara de Inquéritos de Vitória, por requerimento do MP, determinou a juntada e utilização de prova produzida em  operação policial, consistente em escutas telefônicas autorizadas judicialmente, que redundou na apreensão das máquinas caça níqueis para consequente oferecimento de nova denúncia. Assim, as interceptações telefônicas foram colhidas licitamente, podendo ser usadas de forma legítima, como prova emprestada em outro procedimento investigatório.
4. A assertiva de cerceamento de defesa também não se verifica, uma vez que o procedimento inquisitório constitui-se em peça meramente informativa, que objetiva reunir informações a fim de respaldar eventual ação penal, em cuja instrução será dada ampla oportunidade às partes para exercer seu direito ao contraditório. Precedentes.
5. Ordem denegada.
(HC 222.550/ES, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 19/06/2012, DJe 29/06/2012)

Igualmente, é preciso salientar que as partes da segunda ação penal ou investigação não precisam ser necessariamente as mesmas da origem, desde que ao menos um dos investigados já figurasse como alvo no inquérito de origem, onde houve a interceptação.

Nesse sentido:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO PENAL. ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO DE ENTORPECENTES. 816,7 KG DE PASTA-BASE DE COCAÍNA. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA. PROVAS EMPRESTADAS. POSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO DESDE QUE OBSERVADO O DEVIDO PROCESSO LEGAL. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DE PREJUÍZO. MATÉRIA CONSTITUCIONAL. STF. PENA-BASE DE 6 ANOS. ACIMA DO MÍNIMO. POSSIBILIDADE. ACÓRDÃO A QUO EM CONSONÂNCIA COM A JURISPRUDÊNCIA DESTE TRIBUNAL. MATÉRIA CONSTITUCIONAL. STF. SÚMULAS 7 E 83/STJ.
1. A controvérsia essencial refere-se à formação de associação criminosa, cujo desiderato seria o arrebatamento de carregamento de droga de outros traficantes - 816,7 Kg (oitocentos e dezesseis quilos e setecentos gramas) de pasta-base de cocaína -, atestada por meio de depoimento de testemunhas e provas emprestadas.
2. No caso, as interceptações telefônicas - embora autorizadas por juiz de comarca diversa daquela na qual tramitou a presente ação penal - foram realizadas em obediência aos ditames legais e em feito criminal no qual se apuravam crimes de tráfico de drogas cometidos concomitantemente e em estrita vinculação com os apurados nos presentes autos.
3. Os acusados contaram com ampla oportunidade de se manifestar a respeito do conteúdo apurado nas interceptações e, além disso, a condenação do atual recorrente não teve como único fundamento a interceptação realizada pelo Juízo da comarca de Santa Luzia no Estado da Paraíba.
4. O Superior Tribunal de Justiça entende, na fixação da dosimetria da pena - nos delitos de tráfico de entorpecentes -, ser adequada a imposição da pena-base acima do mínimo legal em razão da natureza e da quantidade da droga (art. 42 da Lei n. 11.343/2006).
5. Inexiste dispositivo em lei que determine a realização de perícia em gravações telefônicas para se atestar a veracidade dos diálogos.
6. O acórdão recorrido encontra-se em consonância com a jurisprudência assente do Superior Tribunal de Justiça, assim sendo, aplica-se ao caso vertente a Súmula 83/STJ.
7. A violação do art. 5º, XXXIX e LIV, da Constituição Federal revela-se quaestio afeta à competência do Supremo Tribunal Federal, provocado pela via do extraordinário; motivo pelo qual não se pode conhecer do recurso especial, nesse aspecto, em função do disposto no art. 105, III, da Constituição.
8. Recurso especial improvido.
(REsp 1235181/RO, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 27/03/2012, DJe 11/04/2012)

Neste julgado, o STJ aceitou a prova emprestada, pois as interceptações “foram realizadas em obediência aos ditames legais e em feito criminal no qual se apuravam crimes de tráfico de drogas cometidos concomitantemente e em estrita vinculação com os apurados nos autos em apreço”.

Ademais, “depreende-se do acórdão estadual que os acusados contaram com ampla oportunidade de se manifestar a respeito do conteúdo apurado nas interceptações e que, além disso, a condenação do atual recorrente não teve como único fundamento a interceptação realizada pelo Juízo da comarca de Santa Luzia no Estado da Paraíba”.

Ou seja, neste caso havia vínculo entre os fatos e a condenação não foi baseada apenas na prova emprestada, o que facilitou a sua aceitação por parte  do Superior Tribunal de Justiça.

No HC 155.424, contudo, o STJ entendeu lícita a juntada de interceptação oriunda de investigação envolvendo o PCC - Primeiro Comando da Capital - em ação penal proposta contra um de seus membros.

Veja-se a ementa do referido julgado:

HABEAS CORPUS. CONDENAÇÃO PELOS DELITOS PREVISTOS NOS ARTS. 297 E 288, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CÓDIGO PENAL, E 35, DA LEI N.º 11.343/06. ALEGAÇÃO DE QUE NÃO FOI OPORTUNIZADO À DEFESA VERIFICAR A LEGALIDADE DA DECISÃO QUE DECRETOU A INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA REALIZADA E A REGULARIDADE DO CUMPRIMENTO DAS DILIGÊNCIAS. TESE QUE NÃO SE SUSTENTA. DECISÃO E DADOS DEGRAVADOS COLACIONADOS AOS AUTOS, NO DECORRER DA INSTRUÇÃO. UTILIZAÇÃO DE PROVA PRODUZIDA EM OUTRO FEITO CRIMINAL, CUJOS ELEMENTOS INDICIÁRIOS SÃO INTIMAMENTE LIGADOS. POSSIBILIDADE. HABEAS CORPUS DENEGADO.
1. Se a degravação dos dados colhidos em interceptação telefônica é juntada aos autos da ação penal no decorrer da instrução, não resta configurada nulidade por mitigação ao contraditório, pois se conferiu à Defesa, oportunamente, acesso integral aos referidos elementos probatórios, bem assim à decisão que deferiu o pedido, para o devido exercício da ampla defesa.
2. É lícita a utilização de prova produzida em feito criminal diverso, obtida por meio de interceptação telefônica - de forma a ensejar, inclusive, a correta instrução do feito -, desde que relacionada com os fatos do processo-crime, e, após sua juntada aos autos, seja oportunizado à Defesa proceder ao contraditório e à ampla defesa. Precedentes.
3. Ordem denegada.
(HC 155.424/MG, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 07/02/2012, DJe 24/02/2012)

Observe-se que, em todos os casos, restou superada a alegação de ofensa ao contraditório pela simples constatação que as partes poderia questionar a prova no segundo processo.

      O Supremo Tribunal Federal também vem adotando este mesmo entendimento, como se dessume do seguinte julgado:

HABEAS CORPUS. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA. COMPETÊNCIA DO JUÍZO. DESDOBRAMENTO DAS INVESTIGAÇÕES. IDENTIFICAÇÃO, NO CURSO DAS DILIGÊNCIAS, DE POLICIAL MILITAR COMO SUPOSTO AUTOR DO DELITO APURADO. DESLOCAMENTO DA PERSECUÇÃO PARA A JUSTIÇA MILITAR. VALIDADE DA INTERCEPTAÇÃO DEFERIDA PELO JUÍZO ESTADUAL COMUM. ORDEM DENEGADA.
1. Não é ilícita a prova obtida mediante interceptação telefônica autorizada por Juízo competente. O posterior reconhecimento da incompetência do Juízo que deferiu a diligência não implica, necessariamente, a invalidação da prova legalmente produzida. A não ser que “o motivo da incompetência declarada [fosse] contemporâneo da decisão judicial de que se cuida” (HC 81.260, da relatoria do ministro Sepúlveda Pertence).
2. Não há por que impedir que o resultado das diligências encetadas por autoridade judiciária até então competente seja utilizado para auxiliar nas apurações que se destinam a cumprir um poder-dever que decola diretamente da Constituição Federal (incisos XXXIX, LIII e LIV do art. 5º, inciso I do art. 129 e art. 144 da CF). Isso, é claro, com as ressalvas da jurisprudência do STF quanto aos limites da chamada prova emprestada.
3. Os elementos informativos de uma investigação criminal, ou as provas colhidas no bojo de instrução processual penal, desde que obtidos mediante interceptação telefônica devidamente autorizada por Juízo competente, admitem compartilhamento para fins de instruir procedimento criminal ou mesmo procedimento administrativo disciplinar contra os investigados. Possibilidade jurisprudencial que foi ampliada, na Segunda Questão de Ordem no Inquérito 2.424 (da relatoria do ministro Cezar Peluso), para também autorizar o uso dessas mesmas informações contra outros agentes.
4. Habeas corpus denegado.
(HC 102293, Relator(a):  Min. AYRES BRITTO, Segunda Turma, julgado em 24/05/2011, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-239 DIVULG 16-12-2011 PUBLIC 19-12-2011)

Recomenda-se a leitura do inteiro teor de todos os julgados, os quais demonstram uma aceitação dos Tribunais Superiores com o uso das interceptações como prova emprestada, desde licitamente colhidas e respeitado o contraditório no feito em que estas forem juntadas.

                   Enfim, um ótimo tema para refletir...


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