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Concurso formal impróprio e delação premiada


Caros Amigos

Hoje vou comentar o HC 191.490-RJ, oriundo da Sexta Turma do STJ, que veicula duas questões muito interessantes:

1ª Questão

Para que se aplique o instituto do concurso formal impróprio (art. 70, segunda parte, do CP) é preciso que a prática de dois delitos, através de uma só ação ou omissão, decorra do dolo direto (vontade livre e consciente de obter ambos resultados) ou basta que seja advinda de dolo eventual (assunção do risco de produzir os resultados)?

A Sexta Turma, registrando a existência de dissenso doutrinário e jurisprudencial, entendeu que o art. 70 não realiza tal distinção, pelo que a presença do dolo eventual determina a aplicação da cumulação de penas prevista para o concurso formal impróprio.

Isto é, aquele que supostamente pratica homicídio contra uma gestante, mediante uma facada em sua nuca, assume o risco de provocar o aborto, pelo que merece a cumulação das penas do art. 121, § 2º, com as do art. 125, ambos do CP. Não se afigura necessário, portanto, que houvesse a vontade livre e consciente de provocá-lo, a qual estaria evidenciada apenas caso o golpe fosse desferido na barriga.

A questão doutrinária restou muito bem abordada pelo acórdão, pelo que me resumo apenas a transcrevê-lo, pela qualidade de seus argumentos:

O cerne da controvérsia cinge-se a definir se houve, no caso dos autos, concurso formal próprio (ou perfeito) de crimes, constante da primeira parte do art. 70 do Código Penal, ou se houve concurso formal impróprio (ou imperfeito), previsto na segunda parte do mesmo dispositivo legal.

Para melhor análise da questão sub examine, transcreve-se, por oportuno, o disposto no mencionado artigo, in verbis:

Art. 70 - Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior.

Com efeito, o concurso formal próprio (ou perfeito) de crimes, constante da primeira parte do art. 70 do Código Penal, ocorre quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, ocasião em que aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade.

Segundo Rogério Greco, nos casos em que a conduta do agente for culposa na sua origem, sendo todos os resultados atribuídos ao agente a esse título, ou na hipótese que a conduta era dolosa, mas o resultado aberrante lhe é imputado culposamente, o concurso será reconhecido como próprio ou perfeito (Curso de Direito Penal. Parte Geral. vol. I. Niterói: Impetus, 2008, pág. 597).

Situação diversa, no entanto, é aquela prevista na segunda parte do art. 70 do Código Penal, relativa ao concurso formal impróprio de crimes, em que a lei penal faz prever a possibilidade de o agente atuar com desígnios autônomos, querendo, dolosamente, a produção de ambos os resultados (op. cit., pág. 598). O referido autor esclarece que, por desígnio autônomo, entende-se como sendo a conduta que, embora única, é dirigida finalisticamente, ou seja, dolosamente, à produção de todos os resultados.

Até aqui, parece não haver maiores divergências na doutrina: o concurso formal perfeito caracteriza-se quando o agente pratica duas ou mais infrações penais mediante uma única ação ou omissão; já o concurso formal imperfeito evidencia-se quando a conduta única (ação ou omissão) é dolosa e os delitos concorrentes resultam de desígnios autônomos. Ou seja, a distinção fundamental entre os dois tipos de concurso formal varia de acordo com o elemento subjetivo que animou o agente ao iniciar a sua conduta.

A polêmica, no entanto, se instaura na conceituação do requisito "desígnios autônomos", exigido para a aplicação do concurso formal imperfeito.

Essa posição, no que se refere ao dolo do agente, não é unânime na doutrina e na jurisprudência. Há duas grandes correntes.

Para alguns, é necessário que haja dolo direto em relação a todos os crimes praticados com uma única ação ou omissão. Nesse sentido, menciona-se Heleno Fragoso:

Entendeu o legislador que, havendo desígnios autônomos, ou seja, vontade deliberadamente dirigida aos diversos fins, não se justifica a diminuição da pena, porque subsiste íntegra a culpabilidade pelos fatos diversos. A expressão 'desígnio' exclui o dolo eventual.
(Lições de Direito Penal. 4ª. ed, pág. 349)

Para outros, a expressão "desígnios autônomos" refere-se a qualquer forma de dolo, seja ele direto ou eventual. Vale dizer, o dolo eventual também representa o endereçamento da vontade do agente, pois ele, embora vislumbrando a possibilidade de ocorrência de um segundo resultado, não o desejando diretamente, mas admitindo-o, aceita-o.

Essa segunda posição parece-me a mais acertada, uma vez que o termo desígnio nos remete, logicamente, à ideia de dolo, e o dolo engloba tanto o direto quanto o eventual.

Nesse sentido, já decidiu o Supremo Tribunal Federal:

[...]
O paciente, ao acionar, por diversas vezes, a sua arma, com o propósito indisfarçável de tirar a vida de dois desafetos seus, assumiu o risco de ferir as demais pessoas do grupo que se achavam no local, como de fato, feriu duas delas, as quais, segundo o acórdão, só não perderam a vida em razão do pronto atendimento médico.
Assim, conquanto se tenha configurado, no caso, um erro de execução (aberratio ictus), em face do dole eventual com que agiu o paciente em relação às duas últimas vítimas, haveria ele de responder, como respondeu, por quatro crimes dolosos de homicídio: um consumado, com dolo direto; um tentado, com dolo direto; e dois tentados, com dolo eventual.
Desse modo, as respectivas penas foram-lhe acertadamente aplicadas de forma cumulativa, conforme previsto na parte final do art. 70, a que se reporta o art. 73, que está assim redigido. [...]
(HC n. 73.548⁄SP, Ministro Ilmar Galvão, Primeira Turma, DJ 17⁄5⁄1996)

E, na espécie que se apresenta, a Corte estadual, como mais acima demonstrado, entendeu que estaria evidenciada a prática dos crimes de homicídio duplamente qualificado e de aborto provocado por terceiro em concurso formal impróprio, em razão de o próprio paciente ter afirmado, quando do seu interrogatório, que sabia que a vítima estava grávida e, mesmo assim, ter-lhe desferido facadas que foram a causa de sua morte. Ou seja, sabia que ia matar a vítima e assumiu conscientemente qualquer consequência que disso pudesse advir, fosse a morte do feto, fosse o aborto e com vida, ou com morte em seguida (fl. 116).

Em outros termos, o Tribunal de origem entendeu que estaria evidenciado o concurso formal impróprio, tendo em vista que houve dolo direto em relação ao delito de homicídio e dolo eventual em relação ao crime de aborto, de maneira que os crimes concorrentes resultaram de desígnios autônomos.

Assim, constata-se que, no caso dos autos, os delitos concorrentes, oriundos de uma só conduta, resultaram de desígnios autônomos. Em consequência dessa caracterização, vale dizer, do reconhecimento da independência das intenções do paciente, as penas devem ser aplicadas cumulativamente, conforme a regra do concurso material, exatamente como realizado pelo Tribunal de origem.

Em situação semelhante assim também decidiu este Tribunal:
[...]
O entendimento do Tribunal a quo, no sentido de que o magistrado de primeiro grau teria aplicado a regra do concurso material ao caso está equivocado, pois, a segunda parte do art. 70 do CP não trata de concurso material e sim, de concurso formal imperfeito, que se caracteriza pela ocorrência de mais de um resultado, através de uma só ação, cometida com propósitos autônomos, exatamente a hipótese dos autos.
Ocorre que o réu, através de uma só ação, procedeu sim, com desígnios diversos, pois, em relação à vítima que realmente queria atingir, a conduta foi cometida com dolo direto; já em relação aos demais, evidenciou-se que a conduta lesiva orientou-se pelo dolo eventual - em que o réu assumiu  risco de produzir o resultado.
Assim, como as diversas lesões - orientadas por espécies diferentes de dolo - foram cometidas através de uma só ação - disparo repetido de arma de fogo -, vale a regra referente ao concurso formal, disposta na segunda parte do art. 70 do Código Penal, como bem aplicado pelo magistrado sentenciante.
(REsp n. 138.557⁄DF, Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, DJ 10⁄6⁄2002)

2ª Questão

Outra questão interessante trazida pelo acórdão foi a necessidade da efetividade da colaboração para fins de aproveitamento dos benefícios da redução de pena prevista no art. 14 da Lei 9.807/99, que ostenta a seguinte redação:

Art. 14. O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime, na localização da vítima com vida e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um a dois terços.

Ou seja, não basta apenas indicar o nome de um comparsa, mas é preciso efetivamente identificá-lo, sob pena de não obter o benefício previsto na norma.

Observe-se, neste sentido, a fundamentação do acórdão:

Não obstante, dos documentos trazidos à colação, verifica-se que, embora o paciente tenha declinado o nome de um amigo chamado Pedro – o qual seria o amante da vítima –, não há nenhum elemento nos autos que ateste o uso de tal informação como sendo decisiva para a identificação dos demais coautores ou partícipes do crime, tendo em vista que não se conseguiu identificá-lo, o que não permitiu à polícia chegar até ele, conforme bem destacou a Corte estadual (fl. 115), circunstância que afasta a possibilidade de reconhecimento do benefício almejado.

Não se pode olvidar que o instituto da delação premiada consiste em um benefício concedido ao acusado que, admitindo a participação no delito, fornece às autoridades informações eficazes, capazes de contribuir para a resolução do crime – tais como a identificação dos demais coautores ou partícipes do crime, a localização da vítima com vida e a recuperação total ou parcial do produto do crime.

Todavia, na espécie dos autos, verifica-se que o Tribunal impetrado apontou elementos concretos que evidenciaram não ser o paciente merecedor dessa causa geral de diminuição de pena, já que, embora tenha indicado o nome de uma pessoa chamada Pedro, o qual seria amante da vítima, não houve efetiva colaboração com a investigação policial e o processo criminal, tampouco o fornecimento de informações eficazes para a descoberta da trama delituosa, o que demonstra a falta de intenção de realmente colaborar com a Justiça.

Sobre a questão posta em discussão, já decidiu este Superior Tribunal que o instituto da delação premiada incide quando o Réu, voluntariamente, colabora de maneira efetiva com a investigação e o processo criminal. Esse testemunho qualificado deve vir acompanhado da admissão de culpa e deve servir para a identificação dos demais coautores ou partícipes e na recuperação do produto do crime. Na hipótese, nenhum desses requisitos foi obedecido pelo Acusado (REsp n. 1.111.719⁄SP, Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, DJe 13⁄10⁄2009).

Por essas razões, não há como considerar que o Tribunal de origem incidiu em constrangimento ilegal, uma vez que apontou elementos concretos que evidenciam a ausência de preenchimento dos requisitos necessários ao reconhecimento do benefício da delação premiada, sendo certo que, para entender de modo diverso, seria necessário o revolvimento de todo o conjunto fático-probatório amealhado durante a instrução probatória, o que, como cediço, é vedado na via estreita do habeas corpus, de cognição sumária.

Recomenda-se a leitura do inteiro teor do acórdão.

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