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Direito de permanecer em silêncio e gravação informal de conversa entre acusado e policiais





Caros Amigos,

Hoje vou comentar o recente julgado do Superior Tribunal de Justiça, divulgado no Informativo 505 daquela Corte.

Trata-se do HC 244.977-SC, no qual se discutiu a validade de gravação de conversa informal entre os policiais responsáveis pelo flagrante e o acusado, sem a advertência formal do seu direito de permanecer em silêncio, como consta expressamente da Constituição Federal, mais especificamente do seu art. 5º, inciso LXIII, abaixo elencado:

LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;

Por ocasião do julgamento, entendeu a Sexta Turma que a prova colhida era ilícita, pois não restou assegurado aos acusados de forma efetiva o direito ao silêncio.

Afinal, ainda que tenha constado no auto de prisão em flagrante que os acusados foram advertidos deste direito, tanto que não prestaram declarações, as autoridades policiais acabaram por burlá-lo ao gravar a conversa para obter declaração que não seria fornecida senão através deste expediente.

Sobre a matéria, veja-se trecho do voto do Min. Sebastião Reis Júnior, que entendeu tratar-se de “um falso exercício de um direito constitucionalmente assegurado”.

Ora, se o Estado não se incumbir de concretizar um direito constitucionalmente assegurado na Lei Maior do próprio Estado, não sei quem poderá fazê-lo.

Caso os policiais responsáveis pela gravação do diálogo procedessem de modo a informar ao paciente a existência desse direito, acredito que não haveria diálogo.

Em razão do fato em análise, não foi suprimido do paciente apenas o direito constitucional de ser informado de seus direitos e de permanecer calado, mas também o princípio da imunidade à autoacusação.

Segundo Guilherme de Souza Nucci:

A imunidade à autoacusação significa que ninguém  está obrigado  a produzir prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere). Trata-se de decorrência natural da conjugação dos princípios constitucionais da presunção de inocência (art. 5º, LVII) e da ampla defesa (art. 5º, LV), com o direito humano fundamental que permite ao réu manter-se calado (art. 5º, LVIII). Se o indivíduo é inocente, até que seja provada sua culpa, possuindo o direito de produzir amplamente prova em seu favor, bem como se pode permanecer em silêncio sem qualquer tipo de prejuízo à sua situação processual, é mais do que óbvio não estar obrigado, em hipótese alguma, a produzir prova contra si mesmo.
(Manual de Processo Penal e Execução Penal. 8ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, pág. 86)

Pensar de modo contrário redundaria em permitir que, em um Estado intitulado "Democrático de Direito", toda vez que uma pessoa fosse presa em flagrante, seria previamente submetida a uma conversa informal, gravada, com agentes de polícia e, na ocasião do interrogatório policial, devidamente informada de seus direitos constitucionais, entre os quais o de permanecer calada, o exercitasse, produzindo, sem saber, prova contra si mesma, sob o magnífico argumento de que um dos interlocutores tinha conhecimento da gravação na ocasião do diálogo. Tratar-se-ia, na minha opinião de julgador, de um falso exercício de um direito constitucionalmente assegurado, o que não pode nunca acontecer em um Estado Democrático de Direito.

Também não procede a alegação no sentido de que a gravação seria lícita, por ter sido feita com a ciência de um dos interlocutores, como já reconhecido pelos Tribunais Superiores. Primeiramente, porque a ilicitude de prova não decorre do direito à intimidade, mas da violação do direito ao silêncio. Ademais, trata-se de hipótese distinta dos julgados acima mencionados, como restou bem especificado no voto condutor, abaixo transcrito:

Conforme se observa das decisões hostilizadas, o pedido de desentranhamento do conteúdo da gravação dos autos foi indeferido com base em jurisprudência no sentido de que, quando a gravação ocorre por um dos participantes do diálogo, e não por um terceiro, o procedimento é válido e a prova é considerada lícita.

Não há nenhuma referência, nem na decisão que inicialmente negou o pedido de desentranhamento da prova apontada como ilícita nem no acórdão atacado, de que a gravação tenha ocorrido com o conhecimento do paciente ou de que tenha sido por ele autorizada. O fundamento considerado foi exclusivamente os precedentes jurisprudenciais.

O entendimento citado pode ser sintetizado pelo seguinte precedente do Supremo Tribunal Federal:

AÇÃO PENAL. Prova. Gravação ambiental. Realização por um dos interlocutores sem conhecimento do outro. Validade. Jurisprudência reafirmada. Repercussão geral reconhecida. Recurso extraordinário provido. Aplicação do art. 543-B, § 3º, do CPC. É lícita a prova consistente em gravação ambiental realizada por um dos interlocutores sem conhecimento do outro.
(RE n. 583.937 QO-RG⁄RJ, Ministro Cezar Peluso, DJe 17⁄12⁄2009)

Contudo tal entendimento, pacificado, por ocasião do julgamento da QO no RE n. 583.937⁄RJ, pelo Supremo Tribunal Federal, não se aplica ao caso em análise. Vejamos:

a) o paciente foi preso em flagrante em sua residência, pela suposta prática do crime de tráfico de drogas, por ocasião do cumprimento de mandado de busca e apreensão, tendo sido conduzido, junto com outro corréu, à 18ª Delegacia Regional de Polícia Civil de Laguna⁄SC (fl. 17);

b) na delegacia, segundo consta do auto de prisão em flagrante e dos termos de interrogatórios, o paciente e o corréu, após cientificados de seus direitos constitucionais, exercitaram o direito de permanecer calados (fls. 17⁄18, 29 e 36);

c) segundo consta dos autos, existiu uma conversa entre os policiais e o paciente – ao que parece, antes do interrogatório –, tendo sido gravado o diálogo e juntado aos autos da ação penal como elemento de prova.

Ocorre que, segundo consta do auto de prisão em flagrante, o preso exerceu o direito de permanecer calado, situação que mostra a incoerência da permanência nos autos de um diálogo gravado na delegacia.

(...)

Importante, portanto, fazer um cotejo analítico entre a jurisprudência firmada e a situação tratada no presente habeas corpus, com o fim de reforçar a impossibilidade de se aplicar o entendimento à situação dos autos.

Em primeiro lugar, vamos à semelhança entre casos confrontados:

Em ambos os casos, um dos interlocutores tinha conhecimento da gravação a ser realizada.

Agora, vejamos as diferenças:

No caso do precedente citado – que consolidou o entendimento firmado no sentido da licitude da prova decorrente de gravação ambiental, quando um dos interlocutores possui conhecimento da gravação (RE n. 583.937 QO-RG⁄RJ) –, trata-se de uma ação penal que apura o crime de desacato supostamente praticado pelo acusado contra um Juiz de Direito em audiência. No caso em análise, trata-se de prisão em flagrante pela prática do crime de tráfico de entorpecentes, estando o indiciado na delegacia, aguardando a lavratura do auto de prisão em flagrante.

No caso paradigma (RE n. 583.937 QO-RG⁄RJ), era o acusado quem tinha conhecimento da gravação do diálogo. No caso em questão, os policiais responsáveis pela prisão é que tinham conhecimento da gravação.

No caso paradigma, a gravação foi utilizada para provar a inocência do réu no crime de desacato. No caso em análise, a gravação encontra-se passível de ser utilizada na ação penal para sustentar uma acusação.

No caso paradigma, está em jogo o sigilo das comunicações, em que se entendeu não violado, em razão da ciência de um dos interlocutores a respeito da gravação do diálogo. No caso em questão, está em jogo o direito do indiciado de permanecer em silêncio, na fase policial, direito que não pode ser relativizado em função do poder-dever do Estado de exercer a investigação criminal.

Evidenciado que a prova coletada e constante da ação penal foi produzida em ofensa a direito constitucionalmente assegurado, deve ser considerada ilícita.

Recomenda-se a leitura do inteiro teor do julgado.


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