Caros Amigos,
A natureza jurídica do crime de descaminho é objeto
de interessante debate na seara jurisprudencial.
Afinal, caso se entenda que o descaminho é um crime
contra a ordem tributária, inexistiria razão para não lhe estender os
benefícios legais decorrentes do parcelamento ou pagamento de tributos, como
ocorre, por exemplo, para os crimes de sonegação fiscal ou mesmo para os
delitos previstos nos artigos 168-A e 337-A do Código Penal.
Da mesma forma, não se poderia sustentar a
possibilidade de propositura de ação penal sem a prévia constituição do crédito
tributário, como disposto na Sumula Vinculante n.º 24 do Supremo Tribunal
Federal.
Caso se entenda que o bem jurídico tutelado não
seria exclusivamente a ordem tributária, não haveria razão para se sustentar a
quebra da isonomia, pois o ordenamento estaria tratando casos diferentes de
forma distinta, ao não estender os benefícios legais dos crimes contra a ordem
tributária para o descaminho, o qual, por ser crime formal, não dependeria da
prévia constituição do crédito tributário, diga-se de passagem.
Como se vê, a questão é polêmica, pelos
interessantes desdobramentos que esta ocasiona no dia-a-dia forense. Vejamos,
contudo, o que diz a jurisprudência.
A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal já
entendeu que o descaminho seria, sim, um crime contra a ordem tributária.
Nesse sentido:
PENAL. HABEAS
CORPUS. DESCAMINHO (ART. 334, § 1º, ALÍNEAS “C” E “D”, DO CÓDIGO PENAL).
PAGAMENTO DO TRIBUTO. CAUSA EXTINTIVA DA PUNIBILIDADE. ABRANGÊNCIA PELA LEI Nº
9.249/95. NORMA PENAL FAVORÁVEL AO RÉU. APLICAÇÃO RETROATIVA. CRIME DE NATUREZA
TRIBUTÁRIA. (...) 7. O crime de descaminho, mercê de tutelar o erário
público e a atividade arrecadatória do Estado, tem nítida natureza tributária. (...)
9. Ordem CONCEDIDA.
(HC 85942, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 24/05/2011, DJe-146 DIVULG 29-07-2011 PUBLIC 01-08-2011 EMENT VOL-02556-01 PP-00078)
(HC 85942, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 24/05/2011, DJe-146 DIVULG 29-07-2011 PUBLIC 01-08-2011 EMENT VOL-02556-01 PP-00078)
O Superior Tribunal de Justiça vêm firmando
entendimento neste sentido:
(...)
1. Esta Corte Superior de Justiça possui
entendimento de que ao crime de descaminho deve ser dado o mesmo tratamento
relativo aos delitos contra a ordem tributária, exigindo-se, portanto, para o
início da persecução penal, o esgotamento da via administrativa, com a
constituição definitiva do crédito tributário. HC 139.998/RS, Rel. Min. JORGE
MUSSI, Dje 14.02.2011 e HC 137.628/RJ, Rel. Min. HAROLDO RODRIGUES DJe
17.12.2010.
(...)
HC 129.024/PR, Rel.
Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 26/06/2012, DJe 21/09/2012)
(...)
1. Não há razão
lógica para se tratar o crime de descaminho de maneira distinta daquela
dispensada aos crimes tributários em geral.
Sem o prévio
exaurimento da via administrativa, mostra-se ilegal o ajuizamento de ação
penal. Assim, é de se determinar o trancamento da ação penal no tocante ao
descaminho.
(...)
(RHC 31.395/PR,
Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 19/06/2012,
DJe 29/06/2012)
(...)
1. Tal como nos
crimes contra a ordem tributária, o início da persecução penal no delito de
descaminho pressupõe o esgotamento da via administrativa, com a constituição
definitiva do crédito tributário. Doutrina. Precedentes.
(...)
(HC 201.164/PR,
Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 08/11/2011, DJe 01/12/2011)
(...)
1 - A Sexta Turma desta Corte firmou o
entendimento de que o tratamento conferido aos delitos previstos no art. 1º da
Lei nº 8.137/1990 deve também ser aplicado ao descaminho, por se tratarem
todos, em última análise, de crimes contra a ordem tributária.
(...)
(HC 137.628/RJ,
Rel. Ministro HAROLDO RODRIGUES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/CE), SEXTA
TURMA, julgado em 26/10/2010, DJe 17/12/2010)
O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, contudo,
vem mantendo seu posicionamento no sentido de que o descaminho seria crime
formal e imprescindiria de prévia constituição do crédito tributário,
justamente por não ter natureza exclusivamente tributária.
Nesse sentido:
(...)
9. Há
inequivocamente diferença entre o crime de descaminho e o contra a ordem
tributária. São tipos penais com objetividade jurídica distinta, não podendo
ser aplicado o mesmo entendimento para ambos, no que se refere à condição
objetiva de punibilidade. O delito de contrabando ou descaminho tutela a
Administração Pública, em especial o erário, protegendo também a saúde, a
moral, a ordem pública. De outro modo, no crime do art. 1º da Lei nº 8.137/90,
o bem jurídico protegido é a ordem tributária, entendida como o interesse do
Estado na arrecadação dos tributos, para a consecução de seus fins. A conclusão
do processo administrativo não é condição de procedibilidade para a deflagração
do processo-crime pela prática de delito do art. 334 do CP, tampouco a
constituição definitiva do crédito tributário é, no caso, pressuposto ou
condição objetiva de punibilidade.
(...)
(TRF4, ACR
0000741-71.2009.404.7115, Oitava Turma, Relator Paulo Afonso Brum Vaz, D.E.
20/11/2012)
(...) 1. No crime de descaminho não se exige prévia
conclusão do processo administrativo-fiscal para a instauração da ação penal,
porquanto sua perfectibilização se dá com a entrada da mercadoria em território
nacional sem o pagamento dos impostos devidos. (...)
(TRF4, ACR
5000082-82.2010.404.7004, Sétima Turma, Relatora p/ Acórdão Salise Monteiro
Sanchotene, D.E. 16/11/2012)
O Tribunal Regional Federal da Primeira Região
também tem posicionamentos neste sentido, sobretudo porque, no crime de
descaminho, o procedimento administrativo visa a decretação do perdimento da
mercadoria e não a constituição do crédito tributário.
Nesse sentido:
(...)
1. O delito de
descaminho não é crime contra a ordem tributária e com ele não se identifica e,
conseqüentemente, não é condição de procedibilidade o prévio encerramento do
processo administrativo-fiscal para a persecução penal do crime de descaminho.
2. Nesse sentido é
o entendimento do Supremo Tribunal Federal, para o qual a consumação do delito
de descaminho e a posterior abertura de processo não dependem da constituição
administrativa do débito fiscal, seja porque o delito de descaminho é formal,
de modo a prescindir da ocorrência do resultado naturalístico, seja porque a
conduta materializadora deste crime é "iludir" o Estado quanto ao
pagamento do imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de
mercadoria.
3. O presente caso
não comporta a aplicação da extinção da punibilidade nos termos pelos quais foi
adotada, pois o art. 9º da Lei 10.684/03 prevê a extinção de punibilidade nos
casos de quitação dos tributos referentes aos delitos previstos nos arts.
168-A, 337-A, ambos do Código Penal, além dos arts. 1º e 2º da Lei 8.137/90,
exclusivamente.
4. Apelação do
Ministério Público Federal provida.
(RSE , DESEMBARGADOR
FEDERAL TOURINHO NETO, TRF1 - TERCEIRA TURMA, e-DJF1 DATA:16/11/2012
PAGINA:710.)
(...)
2. No caso de crime
de descaminho, é inaplicável o tratamento dado pelo art. 9º da Lei n.
10.684/2003, aos crimes contra a ordem tributária, definidos nos arts. 1º e 2º
da Lei n. 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168-A e 337-A do Código
Penal.
3. O perdimento da
mercadoria apreendida, ou mesmo o pagamento do tributo, após a consumação do
crime de descaminho, não enseja a extinção da punibilidade, à míngua de
previsão legal.
4. Recurso provido.
(RSE , JUIZ FEDERAL
MARCUS VINÍCIUS REIS BASTOS (CONV.), TRF1 - QUARTA TURMA, e-DJF1
DATA:07/08/2012 PAGINA:139.)
(...)
1. O descaminho é
crime pluriofensivo, em que a conduta ilícita lesa simultaneamente mais de um
bem jurídico tutelado pela lei. Vale dizer, no descaminho a lei pretende mais
que a proteção do erário. Visa também a regularidade nas importações e
exportações e, consequentemente, a eficácia das políticas governamentais de
controle da regularidade das importações.
2. A tipificação e
inserção do delito de descaminho no Título dos crimes contra a Administração no
Código Penal, demonstra a nítida função extrafiscal dos tributos incidentes
sobre importações e exportações. Além do interesse do Estado na arrecadação
tributária, as exações devidas cumprem a função de instrumentos de
implementação da política de defesa e desenvolvimento da indústria e comércio
nacionais.
3. O procedimento
fiscal, no caso de apreensão de mercadorias descaminhadas, não visa à constituição
do crédito tributário, mas a aplicação da pena de perdimento (artigo 23 e
seguintes do Decreto-lei n. 1.455/76). Não há falar em imprescindibilidade de
prévia constituição do crédito tributário, que se restringe aos crimes contra a
ordem tributária previstos nos cinco incisos do artigo 1º da Lei n. 8.137/90,
em que a lei objetiva coibir unicamente a sonegação fiscal. (...)
(RSE , JUIZ FEDERAL
EVALDO DE OLIVEIRA FERNANDES, filho (CONV.), TRF1 - TERCEIRA TURMA, e-DJF1
DATA:20/04/2012 PAGINA:292.)
No mesmo sentido, elenca-se julgados dos Tribunais
Regionais Federais da 2ª, 3ª e 5ª Regiões:
(...)
1. Não se aplica ao
crime de descaminho o posicionamento consolidado do Egrégio Supremo Tribunal
Federal acerca da necessidade de constituição definitiva do crédito tributário
em relação aos crimes previstos nos artigos 1º da Lei nº 8.137/90.
2. Diferentemente
dos delitos previstos no artigo 1º da Lei 8.137/90, o delito de descaminho é
formal, não exigindo para sua consumação a ocorrência de resultado
naturalístico, consistente na produção de efetivo dano à Administração Pública,
abrangendo apenas a ação de iludir, total ou parcialmente, o pagamento de
direito ou imposto devido pela entrada, saída ou consumo de mercadoria.
3. Tal conclusão
pode ser ratificada pelo enunciado da súmula vinculante nº 24 do Supremo
Tribunal Federal, o qual dispõe que “não se tipifica crime material contra a
Ordem Tributária, previsto no artigo 1º, incisos I a IV, da lei 8.137/90, antes
do lançamento definitivo do tributo”.
(...)
(ENUL
200950010000147, Desembargadora Federal LILIANE RORIZ, TRF2 - PRIMEIRA SEÇÃO
ESPECIALIZADA, E-DJF2R - Data::08/01/2013.)
(...)
4. A exigência de prévio lançamento do tributo
é condição para a configuração do crime contra a ordem tributária e não do
delito de descaminho, que se consuma com a entrada da mercadoria no território
nacional sem o pagamento dos tributos devidos.
(...)
(ACR
200561020138518, JUIZ ANDRÉ NEKATSCHALOW, TRF3 - QUINTA TURMA, DJF3 CJ1
DATA:07/10/2011 PÁGINA: 369.)
(...)
4. O bem jurídico protegido no delito de
descaminho, na modalidade praticada, consiste na regularidade das importações e
na proteção ao mercado nacional, não se cuidando de crime contra a ordem
tributária. Por tal razão, o pagamento ou o parcelamento do débito tributário
não dá ensejo à extinção ou à suspensão da punibilidade. Ademais, a questão se
encontra preclusa.
(...)
(ACR 200783000119800, Desembargador Federal Élio Wanderley de Siqueira Filho, TRF5 - Terceira Turma, DJE - Data::24/08/2012 - Página::229.)
(ACR 200783000119800, Desembargador Federal Élio Wanderley de Siqueira Filho, TRF5 - Terceira Turma, DJE - Data::24/08/2012 - Página::229.)
Enfim, a leitura da jurisprudência dos Tribunais
Regionais Federais sinaliza que os julgados do STF e STJ antes citados ainda
não foram considerados como reflexo do entendimento dominante naquelas Cortes.
Trata-se, portanto, de matéria que deve ser acompanhada com cuidado pelo candidato em concurso público.
Sugere-se a leitura dos julgados citados.
Fiquem conosco!!!
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