Caros Amigos,
Hoje vou comentar o Inq. 3.412-AL do STF, que
trouxe importante posicionamento acerca do art. 149 do Código Penal, que trata do
crime de submissão a condição análoga à de escravo.
Segue a ementa:
INQ N.
3.412-AL
RED. P/ O ACÓRDÃO: MIN. ROSA WEBER
EMENTA: PENAL. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA A DE ESCRAVO. ESCRAVIDÃO MODERNA. DESNECESSIDADE DE COAÇÃO DIRETA CONTRA A LIBERDADE DE IR E VIR. DENÚNCIA RECEBIDA.
EMENTA: PENAL. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA A DE ESCRAVO. ESCRAVIDÃO MODERNA. DESNECESSIDADE DE COAÇÃO DIRETA CONTRA A LIBERDADE DE IR E VIR. DENÚNCIA RECEBIDA.
Para configuração do crime do art. 149
do Código Penal, não é necessário que se prove a coação física da liberdade de
ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção, bastando a submissão
da vítima “a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva” ou “a condições
degradantes de trabalho”, condutas alternativas previstas no tipo penal.
A “escravidão moderna” é mais sutil do
que a do século XIX e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos
constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos. Priva-se alguém de
sua liberdade e de sua dignidade tratando-o como coisa e não como pessoa
humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mas também pela violação
intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao
trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno impacta a capacidade da
vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação. Isso também
significa “reduzir alguém a condição análoga à de escravo”.
Não é qualquer violação dos direitos
trabalhistas que configura trabalho escravo. Se a violação aos direitos do
trabalho é intensa e persistente, se atinge níveis gritantes e se os
trabalhadores são submetidos a trabalhos forçados, jornadas exaustivas ou a
condições degradantes de trabalho, é possível, em tese, o enquadramento no
crime do art. 149 do Código Penal, pois os trabalhadores estão recebendo o
tratamento análogo ao de escravos, sendo privados de sua liberdade e de sua
dignidade.
Denúncia recebida pela presença dos
requisitos legais.
Discutiu-se, nesta decisão que recebeu
denúncia contra parlamentar, se seria necessária, para fins de
perfectibilização deste tipo penal, a prova da “coação física da liberdade de
ir e vir”.
O Min. Marco Aurélio, em voto vencido, posicionou-se nos
sentido de que a coação física estaria implícita no dispositivo legal. Ademais,
o eminente Ministro entendeu que o bem jurídico tutelado pelo tipo seria a
liberdade individual, cuja restrição não restou demonstrada no caso em
concreto.
Ressaltou o eminente magistrado que o mero
descumprimento da legislação trabalhista não redundaria em redução a condição
análoga à de escravo, sendo que, tendo a questão sido equacionada na área da
Justiça do Trabalho, não seria adequada a intervenção do direito penal.
A
Ministra Rosa Weber, em voto vencedor, divergiu do entendimento. De início, ressaltou a
necessidade de contextualização histórica da questão. Afinal, o fenômeno da
escravidão sofreu mutação ao longo do tempo.
Sobre
este tópico, nada melhor que destacar as palavras da própria Ministra:
Parafraseando
célebre decisão da Suprema Corte norte-americana (Brown v. Board of Education,
1954), na abordagem desse problema, não podemos voltar os nossos relógios para
1940, quando foi aprovada a parte especial do Código Penal, ou mesmo para 1888,
quando a escravidão foi abolida no Brasil. Há que considerar o problema da escravidão
à luz do contexto atual das relações de trabalho e da vida moderna.
Nessa linha, destaco da denúncia:
“Como é cediço, a escravatura foi abolida do ordenamento pátrio através da Lei Áurea, datada de 13 de maio de 1888. Todavia, não estamos tratando aqui da escravidão como era conhecida no Brasil Imperial, onde as pessoas eram despidas de todo traço de cidadania, mas da neo-escravidão, porquanto a lei não ampara mais tal desumanidade. Dessa forma, não existem mais escravos propriamente ditos, mas cidadãos rebaixados à condição de escravo, em ofensa grave a um dos principais fundamentos do Estado Democrático de Direito, o princípio da dignidade da pessoa humana.”
Não se trata, portanto, de procurar “navios negreiros” ou “engenhos de cana” com escravos, como existiam antes da abolição, para aplicar o art. 149 do Código Penal.
A “escravidão moderna” é mais sutil e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos.
Nessa perspectiva, repetindo Amartya Sen, o renomado economista laureado com o Prêmio Nobel:
“a privação da liberdade pode surgir em razão de processos inadequados (como a violação do direito ao voto ou de outros direitos políticos ou civis), ou de oportunidades inadequadas que algumas pessoas têm para realizar o mínimo do que gostariam (incluindo a ausência de oportunidades elementares como a capacidade de escapar da morte prematura, morbidez evitável ou fome involuntária.” (SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 13)
Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade, tratando-o como coisa e não como pessoa humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mas também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno impacta a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação. Isso também significa “reduzir alguém a condição análoga à de escravo”.
Exemplificando, não há registro no caso presente de que algum dos trabalhadores tenha sido proibido de abandonar o seu trabalho, mas não tenho dúvidas de que eles não persistiriam trabalhando em condições degradantes ou exaustivas se dispusessem de alternativas. Ser escravo é não ter domínio sobre si mesmo.
Por evidente, não é qualquer violação dos
direitos trabalhistas que configura trabalho escravo. Mas se a afronta aos
direitos assegurados pela legislação regente do trabalho é intensa e
persistente, se atinge níveis gritantes e se os trabalhadores são submetidos a
trabalhos forçados, jornadas exaustivas ou a condições degradantes, é possível,
em tese, o enquadramento no crime do art. 149 do Código Penal, pois conferido
aos trabalhadores tratamento análogo ao de escravos, com a privação de sua
liberdade e de sua dignidade, mesmo na ausência de coação direta contra a
liberdade de ir e vir.
Em
síntese, ainda que nem toda violação de direitos trabalhistas implique em
incidência do art. 149 do Código Penal, a atual redação do artigo traz um tipo
misto alternativo que se consuma: a)
com a submissão a trabalhos forçados ou jornada exaustivo, b) com a sujeição a condições degradantes de trabalho, ou mesmo c) com a restrição da capacidade de
locomoção em virtude de dívida contraída com o empregador ou preposto.
Não
se afigura, portanto, imprescindível a coação direta contra a liberdade de ir e
vir. O fato do referido tipo se localizar entre os crimes contra a liberdade
individual não se sobrepõe a sua literalidade, mormente quando a afronta às
condições de trabalho atinge níveis gritantes de intensidade e persistência.
Nesse
sentido, registra-se o posicionamento da Exma. Min. Relatora:
A
origem histórica do tipo penal, que remonta a punição da escravização do homem
livre no Direito Romano, o assim denominado crimen plagii (HUNGRIA, Nelson.
Comentários ao Código Penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958), é
relevante, assim como a sua redação originária no Código de 1940, bem como a
localização topográfica do artigo respectivo no Código Penal, especificamente
no capítulo “Dos crimes contra a liberdade individual”.
Entretanto, apesar de relevantes, tais elementos não são determinantes da interpretação e não podem prevalecer diante da literalidade do dispositivo penal, segundo sua redação alterada em 2003, que prevê expressamente condutas alternativas e aptas a configurar o crime.
Não se
trata de prestigiar acriticamente a interpretação literal, mas de reconhecer
que a redação expressa é consentânea com atual contexto da “escravidão
moderna”.
Portanto, concluo que, para a configuração do crime do art. 149 do Código Penal, não é necessária a coação física da liberdade de ir e vir, ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção, bastando a submissão da vítima “a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva” ou “a condições degradantes de trabalho”, condutas cuja presença deve ser avaliada caso a caso.
De
ser salientado que a Ministra Relatora ressaltou que eventual vício da
fiscalização administrativa não afeta a ação penal, pois se trata de peça
“meramente informativa”. Da mesma forma, não seria imprescindível a realização
de inquérito policial, mormente quando o Ministério Público já tenha em suas
mãos elementos suficientes para o convencimento sobre a ocorrência do delito. Por fim, registrou-se que a realização de acordo na seara trabalhista não
impede a persecução penal, ainda que isto possa influenciar na dosimetria, em eventual condenação.
Recomenda-se
a leitura do inteiro teor do julgado.
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