Caros Amigos,
Nesta semana, continuamos nosso debate sobre o
Direito das Prisões, tratando da ADPF 347.
Proposta pelo PSOL e da lavra de uma
equipe de advogados capitaneada pelo constitucionalista Daniel Sarmento, a ação
pretende o reconhecimento de “estado de coisas inconstitucional do sistema
penitenciário brasileiro”.
A inicial, disponível no site do Supremo Tribunal
Federal, afirma que o descalabro do sistema prisional, que engloba
superlotação, violência e falta da mais básica assistência ao reeducando, é francamente
incompatível com a Constituição Federal
Isto porque:
(...) nossa Lei Fundamental consagra o princípio da dignidade da pessoa
humana (art. 1o, III), proíbe a tortura e o tratamento desumano ou degradante
(art. 5o, III), veda as sanções cruéis (art. 5o, XLVII, “e”), impõe o
cumprimento da pena em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do
delito, a idade e sexo do apenado (art. 5o, XLVIII) assegura aos presos o
respeito à integridade física e moral (art. 5o, XLIX), e prevê a presunção
de inocência (art. 5o, LVII). Estes e inúmeros outros direitos fundamentais –
como saúde, educação, alimentação adequada e acesso à justiça – são
gravemente afrontados pela vexaminosa realidade dos nossos cárceres. O quadro
é também flagrantemente incompatível com diversos tratados internacionais
sobre direitos humanos ratificados pelo país, como o Pacto dos Direitos Civis
e Políticos, a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos e Penas
Cruéis, Desumanos e Degradantes e a Convenção Interamericana de Direitos
Humanos, ofendendo, ainda, a Lei de Execução Penal.
Sustenta a inicial que a jurisdição constitucional
brasileira não deve se limitar ao controle de constitucionalidade dos atos
normativos, mas também deve enfrentar as ações e omissões do Poder Público.
Baseia seu entendimento em precedentes dos Estados
Unidos (Brown v. Plata), África do
Sul (South Africa v. Grootboom), Argentina (Caso Verbitsky) e da Corte Européia
de Direitos Humanos (Torregiani e outros v. Itália), mas principalmente em
decisão da Corte Constitucional da Colômbia, que reconheceu o estado de coisas inconstitucional, o que
poderia ser igualmente feito pelo Supremo Tribunal Federal em sede de ADPF.
Sobre o estado de coisas inconstitucional, afirmou-se
que
19. Esta técnica, que não está expressamente
prevista na Constituição ou em qualquer outro instrumento normativo, permite
à Corte Constitucional impor aos poderes do Estado a adoção de medidas
tendentes à superação de violações graves e massivas de direitos
fundamentais, e supervisionar, em seguida, a sua efetiva implementação.
Considerando que o reconhecimento do estado de coisas inconstitucional confere
ao Tribunal uma ampla latitude de poderes, tem-se entendido que a técnica só
deve ser manejada em hipóteses excepcionais, em que, além da séria e
generalizada afronta aos direitos humanos, haja também a constatação de que
a intervenção da Corte é essencial para a solução do gravíssimo quadro
enfrentado. São casos em que se identifica um “bloqueio institucional” para a
garantia dos direitos, o que leva a Corte a assumir um papel atípico, sob a
perspectiva do princípio da separação de poderes, que envolve uma
intervenção mais ampla sobre o campo das políticas públicas.
20. Para reconhecer o estado de coisas
inconstitucional, a Corte Constitucional da Colômbia exige que estejam
presentes as seguintes condições: (i)
vulneração massiva e generalizada de direitos fundamentais de um
número significativo de pessoas; (ii)
prolongada omissão das autoridades no cumprimento de suas obrigações
para garantia e promoção dos direitos; (iii)
a superação das violações de direitos pressupõe a adoção de
medidas complexas por uma pluralidade de órgãos, envolvendo mudanças
estruturais, que podem depender da alocação de recursos públicos, correção
das políticas públicas existentes ou formulação de novas políticas, dentre
outras medidas; e (iv) potencialidade
de congestionamento da justiça, se todos os que tiverem os seus direitos
violados acorrerem individualmente ao Poder Judiciário.
21. Esta técnica vem sendo utilizado desde
1997, e já foi empregada em pelo menos 9 casos pela Corte Constitucional da
Colômbia, tendo um deles versado exatamente sobre o sistema prisional do
país. Tratou-se do processo T-153 de 1998, em que se reconheceu o estado de
coisas inconstitucional daquele sistema penitenciário. A ação ajuizada buscava, a princípio,
resolver os casos concretos das prisões Bellavista e Modelo, localizadas,
respectivamente, em Medellín y Santa Fé de Bogotá. Entretanto, a decisão
que dela se originou acabou por abordar o sistema carcerário do país como um
todo.
Argumentou que a afronta a direitos fundamentais,
bem como a ausência de outros meios aptos a veicular a pretensão, justificam a
aplicabilidade da ADPF ao caso em concreto.
O risco de intervenção excessiva em outros poderes
poderia, por sua vez, ser minimizado pelo uso de técnicas decisórias mais
flexíveis, que igualmente reduziriam o impacto da falta de expertise do
Judiciário em algumas matérias.
Neste sentido:
55. Porém, tanto a questão da capacidade
institucional, como o respeito ao espaço legítimo de deliberação
democrática, indicam que, em casos como o presente, a melhor solução para o
estado de coisas inconstitucional é alcançada por meio de técnicas
decisórias mais flexíveis, baseadas no diálogo e cooperação entre os
diversos poderes estatais. Foi o que se deu em casos referidos no item
anterior, julgados por outros tribunais constitucionais e internacionais: ao
invés de a solução para o problema constitucional diagnosticado vir pronta
do tribunal, atribuiu-se ao governo a possibilidade de formulação de plano
para a sua superação, com prazo certo e recursos assegurados. Os planos,
nessa hipótese, devem ser aprovados pelo Judiciário, que depois monitora a
sua implementação, contando para tanto com a assessoria de entidade
independente dotada da necessária expertise,
e se beneficiando também da participação da sociedade civil durante o
processo.
São várias as causas da situação calamitosa do
sistema penitenciário nacional segundo a inicial, podendo-se destacar,
exemplificativamente, o uso excessivo da prisão provisória, a ausência de
assistência jurídica, infraestrutura, assistência material, saúde, educação,
bem como da possibilidade de trabalho ao reeducando.
Para solucionar estes problemas, além da
determinação de elaboração de um plano nacional que supere os óbices
estruturais por ocasião do julgamento do mérito da ação, objetiva a exordial a
concessão de medida liminar que contemple os seguintes pedidos.
a) Determine a todos os juízes e tribunais que,
em cada caso de decretação ou manutenção de prisão provisória, motivem
expressamente as razões que impossibilitam a aplicação das medidas
cautelares alternativas à privação de liberdade, previstas no art. 319 do
Código de Processo Penal.
b) Reconheça a aplicabilidade imediata dos
arts. 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção
Interamericana de Direitos Humanos, determinando a todos os juízes e tribunais
que passem a realizar audiências de custódia, no prazo máximo de 90 dias, de
modo a viabilizar o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária em
até 24 horas contadas do momento da prisão.
c) Determine aos juízes e tribunais brasileiros
que passem a considerar fundamentadamente o dramático quadro fático do
sistema penitenciário brasileiro no momento de concessão de cautelares
penais, na aplicação da pena e durante o processo de execução penal.
d) Reconheça que como a pena é
sistematicamente cumprida em condições muito mais severas do que as admitidas
pela ordem jurídica, a preservação, na medida do possível, da
proporcionalidade e humanidade da sanção impõe que os juízes brasileiros
apliquem, sempre que for viável, penas alternativas à prisão.
e) Afirme que o juízo da execução penal tem o
poder-dever de abrandar os requisitos temporais para a fruição de benefícios
e direitos do preso, como a progressão de regime, o livramento condicional e a
suspensão condicional da pena, quando se evidenciar que as condições de efetivo
cumprimento da pena são significativamente mais severas do que as previstas na
ordem jurídica e impostas pela sentença condenatória, visando assim a
preservar, na medida do possível, a proporcionalidade e humanidade da
sanção.
f) Reconheça que o juízo da execução penal
tem o poder-dever de abater tempo de prisão da pena a ser cumprida, quando se
evidenciar que as condições de efetivo cumprimento da pena foram
significativamente mais severas do que as previstas na ordem jurídica e impostas
pela sentença condenatória, de forma a preservar, na medida do possível, a
proporcionalidade e humanidade da sanção.
g) Determine ao Conselho Nacional de Justiça
que coordene um ou mais mutirões carcerários, de modo a viabilizar a pronta
revisão de todos os processos de execução penal em curso no país que
envolvam a aplicação de pena privativa de liberdade, visando a adequá-los
às medidas “e” e “f” acima.
h) Imponha o imediato descontingenciamento das
verbas existentes no Fundo Penitenciário Nacional – FUNPEN, e vede à União
Federal a realização de novos contingenciamentos, até que se reconheça a
superação do estado de coisas inconstitucional do sistema prisional
brasileiro.
A ADPF, que aguarda análise pelo Min. Marco Aurélio
Mello, tem o mérito de levar ao Supremo Tribunal Federal a análise de questões
relevantes e atuais, as quais devem ser acompanhadas por todos os interessados
na matéria.
Reparem que são vários os casos perante os
Tribunais Superiores a enfrentar o tema do caos no sistema prisional brasileiro,
a demonstrar que a matéria não só é relevante, como esta na iminência de ter
seu mérito enfrentado em última instância.
Fiquem conosco e indiquem o Blog a quem interessar
possa.
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